Morte incompleta

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Morte incompleta

 

Há um espelho que me simula oculto
quando aparento ser mais verdadeiro
do que o real reflexo da minha impermanência.
Sustenho-me na sombra do sol que tudo revela
e sei não ser mais do que luz negra. Silhueta
intermitente de uma mão estendida dada
às avenidas surdas, presa às esquinas
de um livro cuja escrita é feita de pão,
migalhas de versos invisíveis, inversos à vida
ao dorido remorso das almas que se espraiam
sem abrigo numa morte lenta onde a pobreza se senta.
Não me vejo. Sei de mim, miragem cega,
cinza de um céu deixado vago por um deus iletrado
que comigo agora viaja, exilado, e cresce sem freio
por entre raízes circulares em inférteis paraísos
de pranto e solidão. Ambos morreremos,
incompletos, pregados na sombra da cruz.

Fernando C. Leal

Alchemy from Henry Jun Wah Lee / Evosia on Vimeo.

Ascendance from Henry Jun Wah Lee / Evosia on Vimeo.

Diário de Bordo (XXXIII): Tanta, tonta e tão tantalizada cegueira colectiva

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Diário de Bordo (XXXIII): Tanta, tonta e tão tantalizada cegueira colectiva

 

Sedento de mundo percorro os amigos que se fazem anunciar mas que sempre tardam em chegar. Abro-lhes as portas e a eles todo eu me ofereço sem reservas. Percorro-lhes os sentidos como quem sintoniza a TV, toco-lhes as veias exangues da ceia para a qual nunca foram convidados e percorro os sinuosos trilhos dos seus corações “Duracell“. Hospedo-os nos carris do desassossego comum e sigo-lhes os caminhos da geografia com que no “Facebook” e no “Twitter” se fazem simuladamente auto-cartografar. Toco-lhes, e eles vibram e dançam que nem microcosmos sedento de se agigantar. Respiro-lhes o anémico Big-Bang e, sem surpresa, a eles me junto e a eles subtraio as misérias e grandezas humanas que tecem o moderno Olimpo civilizacional.

Nesta labiríntica espuma existencial, insisto no beijo franco com que faço assentar a poeira universal que nos afasta da mais próxima das galáxias vivenciais que a todos cega por igual, a ‘Egolândia’. Dou-lhes Delfos, um unicórnio branco e um telescópio retrovertido. Cedo-lhes Newton, os Papas, os teatros de guerra e todas as idolatradas agências e agentes económicos, políticos, financeiros e mediáticos que, como novos fariseus, a eles nos fazem curvar e prestar vassalagem a troco de um hipnótico ninfeu pós-moderno ao qual, nem tu nem eu, podemos na areia que nos sopra nos olhos construir livremente outros visionários castelos que não sejam os da maquilhada réplica da clássica mas sempre desavinda Babel.

Tanta, tonta e tão tantalizada cegueira colectiva, esta que nos inala, absorve e corrói!

Enfim, neste consentido jogo de espelhos societário nem a simulação das evidências resiste ao mimetismo das aparências diariamente encenadas como coisa real e primordial nos telejornais, nos transportes e nos silêncios públicos em que nos fazemos banhar e neles alimentar o nosso encolhido imaginário colectivo. 

Este é o admirável mundo novo de Maya. De Maya tecnologicamente reciclada; de Maya travestida de eloquente cientificidade discursiva; de Maya em nós clonizada, disseminada e venerada; de Maya por nós ilusoriamente colonizada e supostamente domesticada.

Eis, amigos, a nossa actual sociedade de sucesso e de bem-estar, fria e distante, que connosco come à mesa, se serve fria e, ainda mais fria, connosco se deita e nos anestesia, nos fornica a alma e nos maltratada e mata enquanto ainda vivos, e, sabendo-nos amnésicos, nos automatiza a imitação da alegria breve e a repetição dos dias supostamente felizes. Matrix, quem diria(?)

 

Fernando C. Leal

Lisboa em fuga, e eu em Amesterdão.

 

Não há pedra de calçada em Lisboa que não seja fado marinheiro
a desbravar Avenidas de Poemas nos incontidos heterónimos de Pessoa.

Sigo-lhes o rasto e, às apalpadelas, descubro-lhes continentes sensientes, ávidos de um Universo que à mesa da mais metafísica das galáxias junte na última ceia de todos os poetas a loucura de uma virgem deusa a despir-se de todo e qualquer preconceito. Uma lúcida bebedeira de filosófica nudez na qual Maria Madalena, como actriz principal, contracena e incarna de uma só vez todas as Marylins que povoam o meu (nosso?) imaginário.

Penso e escrevo isto tendo por perto uma janela cuja embaciada vidraça me faz adivinhar na esquina mais próxima uma nesga de mar. É certo que Amesterdão acolhe-me como apenas mais um dos seus incógnitos marinheiros. Procuro apenas uma mão onde ancorar o pássaro que em mim e comigo impestesuosamente se diz e se quer fazer náufrago de uma fuga impossível. “Não sou assim tão livre”, respondo-lhe ao ritmo lento da cerveja que me soletra o sono e me interroga: “Fugir? De que foges tu bom rapaz?”

Fernando C. Leal

Tempo(ral)?

 

 

Passamos a vida ora a recear ora a desejar o futuro, iludindo, assim, o fardo da memória que nos faz viver no passado.

O presente, este único e irrepetível momento que agora (e só agora) cada um de nós vive, onde está, para onde vai ou onde fica?

Curioso, se a nossa memória pouco guarda do passado, onde estávamos e o que éramos quando aconteceu aquilo de que já não nos recordamos? O esquecimento terá temporalidade?

Adeus, a eutanásia dos afectos.

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Adeus, a eutanásia dos afectos

A persistência de um Adeus
É a mais dolorosa experiência individual
De morte enquanto vivos.
Só a fé nos faz acreditar
Na ressureição
Do sempre adiado retorno
A que a saudade serve de trilho
E de bilhete de combóio com ída
Sem volta. E por mais voltas que se dê
Só a memória sustem esse trem
De nevoeiro
E nele embarca
Bagagens de fado sebastiânico
Até que o esquecimento sobrevenha
E cale o lancinante grito dos roucos
Pensamentos loucos.
O Adeus é o fecundo rebento
Da mais árida das solidões,
É a eutanásia dos afectos
Que dormem no cemitério
Do surdo gemido racional
Da mente animal
Da qual a esperança, sua caveira,
Não será nunca sua coveira.

Fernando C. Leal

Virgem em Banho Maria

Virgem em Banho Maria

Abre-se em cinzas
O caminho que há-de ser vulcão.
Ardo. Como papel pardo
Faço-me felino sem garras
Amarrado à silhueta do Vaticano
Ardente e de mim ausente,
Trinco e agarro o cigarro que me fuma:
Fumo branco em lume brando
Aranha que não arranha
Em Banho Maria. Virgem
Viúva negra a cavar escravos altares
De espanto e solidão
Nos desertos caminhos
Que nem o Nilo nem o Tejo
Desbravam na Lisboa ferida
Que em mim mora.

Fernando C. Leal

Espera d’Arte

Espera d’Arte

 

 

A sombra mora à flor da pele. Tem traço

de árvore no nosso coração de clorofila, feminino

como a maçã de Adão. Ela, nua de nós vestida,

espera-nos sentada na esquina louca

de uma das nossas avenidas principais, onde, normais

morremos no inverno de todos os nossos ideais.

O Nosso tédio é o nosso remédio. Consolação,

amparo de Platão e ciclo de Sócrates. Sem cio,

poetas e profetas seriam analfabetos como todos nós.

Sei que a espera das sombras sobrevive mais além

do que a singela eternidade do nosso sono profundo.

Sem trajecto, as sombras juram fidelidade ao sol;

São anjos e nós delas intermediários de deuses menores.

As sombras não têm memória. Acompanham-nos sempre

sem o queixume da nossa impossível ausência.

Esperar é a dolorosa arte da eternidade.

 

Fernando C. Leal

 

Feitiço

Feitiço

Esta noite serei árvore
e nela acordarei os sonhos
que humedecem os musgos da minha aldeia
Viajarei em locomotivas de pólen
sobre carris de céu a beijar
O espanto dos trigais
Que acolhem a minha fuga.
Então, ao chegar a casa,
convidarei nobres magos
para comigo cear a clorofila das florestas
e beber da alquimia das chuvas de verão.
Hoje, a noite é de feitiço!

F. Leal

Poemologias: ‘Sem Anos de Solidão’



Sei de mim, ora vivo ora gasto. Pardo!

Saber-me cinzento é ceder-te cor. Brilho

e borbulha de dor afogada na efervescência

de uma aspirina imaculada.

Sem remédio o amor

basta-se e morre sem fervor, afoga-se

de paixão até ao coma. Redoma de ardor,

Suplício que me inala as veias

de tanto e tão tonto vício, bolor e desperdício.

Sabes, meu amor, a ausência é simplesmente

a eutanásia de uma borboleta ferida na impossível

viagem de regresso à sua inicial metamorfose. Parto!

Mar morto? Virgindade bíblica de uma Avé Maria

a ancorar barcos de silicone num Porto de origami,

Casulo breve de maresia, epidemia e alergia

Patologia inventiva do desassosego dos faraós

Comichão de Zeus a sacudir inquietações

no colchão da História dormente.

Doente sem mente, eu sou!

Sou filho da hipnose de Morpheus

Sangue do feitiço zen, irmão do Valium dez

e amante do Alzheimer que me filtra os silêncios.

Sou colchão e poema do meu chão ausente,

Tortura e ternura de quarenta Alibabás

a roubar ao deserto da memória eloquente

o avatar do meu Prozac:

Sou espantalho em fuga, preso

aos meus sem anos de solidão.


Fernando Cortes Leal